segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Capítulo XV - A Forma das Civilizações

I Funções e Castas: Células e Homens


No último capítulo, começamos a considerar a humanidade como um cosmos e os diferentes tipos humanos como suas funções. Mas visualizar a humanidade em todas as etapas de desenvolvimento, em todas as partes do mundo, em todas as idades históricas e pré-históricas, é muito difícil. Na prática, a maior unidade da sociedade humana que podemos estudar em detalhes e de todos os ângulos simultaneamente é uma civilização ou cultura.

Quando elaboramos as escalas de tempo de diferentes entidades, tentamos, sem muito sucesso, considerar uma civilização como um organismo vivo. Agora já acumulamos material suficiente sobre a ‘forma’ geral ou modelo das entidades orgânicas no espaço e no tempo para tentar novamente.

Nossa primeira proposição é que os homens individuais são as células de uma civilização. Essas células são de classes evidentemente muito diferentes. Há lavradores e agricultores, que, como as células dos órgãos e sucos digestivos, têm o dever da preparação do alimento para a nutrição do organismo como um todo. Existem os comerciantes, que, como as células sangüíneas, distribuem os vários produtos do organismo para todas as suas partes. Existem pedreiros, engenheiros e arquitetos, que constróem as cidades, povoados, fábricas e linhas de comunicação que correspondem aos vários órgãos e tecidos. Existem soldados e policiais de prontidão, que, a exemplo dos produtos armazenados nas supra-renais, atuam na defesa de todo o organismo quando este se encontra em perigo. Existem cientistas, inventores e pensadores que representam as células do córtex cerebral e da máquina intelectual. E poetas, artistas e místicos que correspondem àquela parte do sistema nervoso condutora da vida emocional. Finalmente existem criminosos de todas as classes, de batedores de carteira aos falsos profetas, que desempenham um papel semelhante àquele dos venenos ou toxinas que dão origem às enfermidades.

Essa analogia exata entre células e cidadãos, o corpo e o estado foi totalmente elaborada pelo fundador da patologia celular, o prussiano Rudolf Virchow, em 1850. Mais tarde, no final do século, os cientistas positivistas chegaram a considerá-la demasiadamente ‘pitoresca’. E um compêndio científico moderno,62 excelente entre os desse tipo, diz: “Animais e plantas, tais como os conhecemos, são uma comunidade de células, assim como o Estado é uma comunidade de homens, embora a analogia não deva ser levada muito adiante.” Porém, nem nesta nem noutras obras foi explicado o que pode ser ‘muito adiante’ e nem por que tal analogia não possa ser desenvolvida. Na realidade, não há uma só célula no corpo humano cujas funções não possam ter paralelo em alguma função ou profissão humana. E essas células funcionais referem-se umas às outras e comunicam-se entre si de formas análogas às existentes entre os homens.

Essas funções principais dentro do organismo de uma civilização foram expressas de forma simplificada na idéia de castas, que serviu como idéia estrutural de sociedade em diferentes épocas. Tal idéia torna-se facilmente distorcida e pervertida. Mas, em sua origem, as castas medievais do clero, cavalaria, burguesia e lavradores ou as castas hindus correspondentes de brâmanes, shatrias, vaishas e sudras eram expressões das verdadeiras funções dos homens individuais como células de um organismo maior.

Em seu melhor sentido, a idéia de castas nunca foi rígida. Embora a hereditariedade tivesse um grande papel nela, outros fatores eram reconhecidos como prevalecentes sobre a hereditariedade e havia permissão de que alguns homens mudassem de uma casta para outra. Particularmente, um cavaleiro, um burguês ou mesmo um servo poderiam adentrar o clero, tornando-se assim incorporados àquela considerada a mais alta função da sociedade. Na Europa do século XII, assim como na Roma do século I, também era possível para um servo sagaz comprar sua liberdade e tornar-se um burguês ambicioso – aceitando maior responsabilidade –, tornar-se um emergente ou cavaleiro. Castas exclusivas com barreiras intransponíveis entre elas – como na França do século XVIII ou na Índia do século XIX – são sempre indicativos de uma sociedade desenvolvida rigidamente e na urgência de mudança, tal como um corpo com artrite necessita de calor e exercício.63

Em distintas épocas, tais funções de castas podem ser levadas a cabo por diferentes povos ou raças dentro de uma civilização, como os drádivas originários tendiam a tornar-se sudras e os conquistadores arianos, brâmanes e cavaleiros; ou como na moderna New York os chineses tendem a tornar-se donos de lavanderias e restaurantes e os irlandeses, policiais e motoristas de ônibus. Isso não altera o fato principal de que cada uma das várias funções orgânicas deve, numa verdadeira civilização, ser realizada por um grupo definido com seus próprios ideais e desfrutando de uma relação harmoniosa com todos os demais grupos funcionais. Se isso parece agora impossível e utópico, é meramente uma indicação dos males de nossa sociedade atual.

Há ainda outra implicação dessa idéia. Um homem individual pode, como sabemos, ser dirigido por qualquer uma de suas funções; pode ser dirigido por seu estômago e digestão e viver principalmente para comer e beber; pode ser dirigido por sua função motora e viver principalmente para o movimento, atividades e viagens; pode ser dirigido por sua mente e viver para teorias, investigações e busca do conhecimento; pode também ser dirigido por algum desejo ou meta emocionalmente forte e tentar viver sua vida de acordo com isso.

Exatamente da mesma maneira, as civilizações podem ser dirigidas por qualquer um desses grupos funcionais. É possível pensar em estados dirigidos por camponeses como a Albânia, em estados dirigidos por comerciantes como a Inglaterra do século XIX ou estados dirigidos por guerreiros como Sparta, assim como estados dirigidos pelo clero como no antigo Egito, o império monástico cluniense no século XII e o moderno Tibete.

Enquanto homens individuais continuam a existir sob cada um dos impulsos de controle mencionados, usualmente pensamos que um homem está mais altamente desenvolvido se ele estiver dirigido por suas funções mais elevadas, como a razão ou emoções mais refinadas. O mesmo aplica-se às civilizações. Assim como podemos reconhecer que um homem pode ser dirigido por um intelecto ou emoção perversos, também as civilizações podem ser dirigidas por uma inteligência degenerada ou um clero corrupto. Isso não altera o fato de que tais funções em sua essência sejam de natureza superior e mais apropriadas para dirigir. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de levar em conta que qualquer uma das funções pode tornar-se incuravelmente enferma e o estado cair sob o controle de um proletariado criminoso, um alto comando criminoso ou políticos criminosos. Nesse caso, corresponde desafortunadamente a um homem governado não por uma função saudável, mas por uma enfermidade física ou mental.

Teoricamente, contudo, podemos dizer que, ainda que cada civilização tenha seus próprios gostos, capacidade e compreensões, a civilização perfeita seria aquela na qual os diferentes grupos funcionais estivessem arranjados numa hierarquia ascendente de acordo com o refinamento natural da energia com a qual seus deveres estivessem relacionados. Como vimos na fisiologia humana, a função de respirar trabalha com uma matéria mais fina que a digestão, a circulação sangüínea com uma matéria superior à da respiração e os vários sistemas nervosos com energia ainda mais refinada. Mediante uma função objetiva, as funções acomodam-se entre si nessa ordem. E assim acontece com os grupos funcionais de uma civilização. Quer tal ordem de castas objetiva ou orgânica tenha sido historicamente alcançada ou não, é um assunto diferente e muito duvidoso.

Referimo-nos aos estados como que dirigidos por um ou outro grupo funcional. Mas isso era somente para esclarecer certos princípios. Estados não são em geral de grande importância orgânica. É a civilização que é o ser orgânico – no sentido em que falamos de civilização grega, romana, cristã medieval, renascentista ou maia. Um estado pode ou não aproximar-se de um cosmos. Uma civilização verdadeira é única. Um estado pode ou não depender de homens conscientes. Uma civilização não pode adquirir ser sem eles.

O professor Toynbee64 descreveu dezenove civilizações orgânicas dessa espécie, cada uma delas tendo seu tempo de gestação, nascimento, desenvolvimento, período de poder e influência máxima e, à parte, alguns poucos casos ainda existentes, seu declínio e morte. A maioria delas, como ele aponta, está relacionada a uma ou mais das outras como progenitora ou descendente. E, embora não possa acrescentar o bastante para descrever as criaturas de seu estudo como seres vivos, toda sua evidência e argumentos mostram que de fato elas o são.

A lista de civilizações completamente desenvolvidas do professor Toynbee é a seguinte: Ocidental, Ortodoxa, Iraniana, Árabe, Hindu, Extremo-Oriental, Helênica, Síria, Índica, Sínica, Minoana, Suméria, Hitita, Babilônica, Egípcia, Andina, Mexicana, Iucateque e Maia. Ele também descreve três – a Esquimó, Polinésia e a Nômade – que, como seres humanos de desenvolvimento suprimido, não chegaram a desenvolver-se, senão até certo grau, permanecendo prazerosamente detidos na idade escolar de caçar, pescar e trepar em árvores. E ele acrescenta ainda duas mais, a Cristã Irlandesa e a Escandinava, que foram dizimadas ou sacrificadas por outras civilizações no apogeu de sua juventude. O fato de que essas duas últimas tivessem atrás de si trezentos ou quatrocentos anos de história quando foram sobrepujadas nos dá alguma idéia da escala de vida de tal organismo.

No entanto, há uma observação que podemos fazer à lista do professor Toynbee. Algumas de suas civilizações, como a da Europa Ocidental, que ele reporta à época de Carlos Magno (séc. VIII), parecem muito extensas. Posteriormente, trataremos de demonstrar que a nossa civilização ocidental renasceu em várias ocasiões com certas características hereditárias, mas a cada vez com uma nova forma e novo caráter. E o que nos parece ser uma só civilização é na verdade várias gerações sucessivas de civilizações, cada uma das quais com uma duração de vida orgânica tão definida e limitada como a designada ao homem pela natureza.

Como podemos considerar o tempo de uma civilização? Talvez possamos encontrar algum indício se tentarmos descobrir como uma civilização é concebida e nasce.

Os homens são suas células. No último capítulo, chegamos à conclusão de que existia uma certa categoria invisível de homens com espíritos conscientes em virtude de que estão conectados com outras dimensões do universo e podem influenciar e elevar dezenas de milhares e até milhões de homens comuns. Se estudarmos a escala da história, veremos que tais homens são para os homens comuns o que a célula do esperma é para uma célula de tecido comum e que eles dão origem às civilizações assim como o espermatozóide em sua união com o óvulo dá origem a um novo ser humano. A vida de tais homens representa a concepção de uma nova cultura.

Isso não significa, é claro, que todos os homens desse nível fundem novas civilizações, assim como nem todas as células de esperma geram homens. O tempo deve ser adequado e condições e matéria prima do mundo ao redor devem estar dispostos para a germinação. De qualquer maneira, tais homens, microcosmos por assim dizer de suas próprias civilizações, têm a princípio o poder inato de originar uma nova civilização. E, se não geram a cultura, elevam seu tom, vivificam-na e regeneram-na, exatamente como a energia sexual em abundância dentro do corpo que a produz.

Na maioria dos casos, na verdade, é extremamente difícil traçar uma cultura reportando-se a um único homem, assim como é praticamente impossível estudar a história do embrião humano anteriormente aos seus oito dias, quando ele já contém algumas centenas de células. Além do mais, é um estranho princípio que, quanto maior o nível do fundador, mais historicamente despercebido ele permanece, assim como de Jesus Cristo, o maior e mais glorioso de todos os fundadores, não temos – à parte os evangelhos – qualquer traço contemporâneo.

Se um homem superior é para uma civilização o que a célula reprodutora é para a vida humana, deveríamos então esperar uma multiplicação análoga das diferentes fases do ciclo da vida na proporção de um organismo para o outro. No homem, a gestação, infância e o término da vida completa dura 10, 100 e 1000 meses lunares respectivamente. Continuando essa progressão logarítmica, podemos propor 100, 1000 e 10000 meses lunares (ou aproximadamente 8, 80 e 800 anos) como as fases correspondentes de uma cultura. Lembrando que o primeiro, ou período de gestação, é aquele ‘invisível’, passado no útero materno no caso do embrião e em alguma incubação oculta – num mosteiro, no deserto, em alguma ‘escola’ oculta ou com algum mestre no exílio – no caso do fundador de uma cultura, vemos então que esses períodos parecem suficientemente prováveis.

Oito anos seria o período de gestação de certas idéias básicas de uma nova cultura. O fundador trabalha intensamente com seu círculo interno de discípulos ou alunos, assimilando-os, por assim dizer, a suas próprias idéias e em direção a seu próprio nível de ser. Um ensinamento é formulado, escritos são redigidos, certas descobertas básicas, invenções ou códigos de leis são alcançados. Cria-se assim algum momento intensamente concentrado – as leis de Sólon para os gregos, os evangelhos para os primeiros cristãos, o Alcorão para os árabes – que, até os últimos dias dessa cultura, constituem sua lei e inspiração. O período de gestação de uma civilização, não é o tempo de vida do fundador, mas sua fase de mais intensa criação e realizações.

Oitenta anos serão o período de expressão física dessas idéias básicas ou ensinamentos e corresponderão àqueles anos de fabulosas invenções, descobertas e criação, visíveis historicamente como o começo de cada verdadeira civilização. Esse é o trabalho de uma vida do círculo imediato do fundador. Para uma cultura, contemplamos um florescimento da religião e da arquitetura; para outra, a difusão da ordem, administração e preceitos morais; para outra ainda, um súbito enriquecimento da criação artística e descobertas científicas; e assim por diante. Enquanto isso, por trás de cada uma, aparece, como pode ser visto, um certo padrão básico e certo conhecimento interno de natureza esotérica.

Essa é a infância de uma civilização, o período da formação de sua personalidade, sua idade do ouro que, em comparação com tudo que vem depois, parece estranhamente tedioso e pedestre. Posteriormente, as gerações a apreciam segundo seu estado de ânimo, como os homens olham para sua infância – seja como uma época em que os milagres eram possíveis ou como um tempo que superaram para ingressar na ‘mais sábia’ desilusão da vida adulta. A existência de um período assim também explica aqueles súbitos e extraordinários florescimentos que, num século ou menos, surgem da barbárie à civilização e que, com igual rapidez, desaparecem.

A cultura pitagórica, por exemplo, na Sicília e sul da Itália nos séculos VI e V a.C., ergueu naquelas terras virgens os maiores templos e cidades do mundo grego e aperfeiçoou todo um sistema potencial de ciência e filosofia – para ser varrida no ápice de suas realizações pela rival civilização romana do norte. No patrimônio do Mediterrâneo Ocidental, não havia então lugar para duas civilizações irmãs e foi a pitagórica que sucumbiu.

Finalmente, há o período de setecentos ou oitocentos anos, que serão a vida total da civilização, ao final da qual morrerão suas idéias básicas e instituições. Ou seja, perderão todo traço de seu significado original e utilidade, embora, em alguns casos, elas subsistirão como múmias ou memórias do passado – como as catedrais góticas nos dias de hoje.

Lembrando como o tempo de vida do homem termina por uma extraordinária conjunção de todos os ciclos planetários, devemos agora perguntar se o tempo de vida de uma civilização também não corresponde a algum grande ritmo cósmico, pois qualquer período que não a tenha será uma invenção e não um ser orgânico. De fato, encontraremos exatamente tal período. “Um período que abarca quase que exatamente um número integral de dias, anos, períodos de manchas solares e todas as várias revoluções lunares”, escreve Sir Napier Shaw, “incluiria quase tudo o que de externo pudesse ser concebido, afetando a atmosfera da Terra. Tal período é de 372 anos, metade de um período ainda mais prolongado de 744 anos.” 65 Durante esse período, uma civilização experimenta cada combinação possível de influências, ao final da qual exaure suas potencialidades e morre.

Num período de vida de 744 anos, todavia, o transcurso da metade desse período marcará o crescimento máximo, difusão, poder e influência da civilização que, a partir de então, decairá lentamente e dará lugar a uma nova civilização, da qual muito provavelmente será a progenitora. A redução logarítmica de tempo que foi notada na vida do homem e que significa que a cada ano menos acontece algumas vezes dá origem à impressão de que as culturas sejam mais curtas do que realmente são. A nova geração será tão vigorosa, que a velha tornar-se-á invisível, como um rei que, ao ceder o trono ao filho e viver em retiro, torna-se invisível, embora de fato ainda viva e sua influência persista de forma limitada. Hoje, por exemplo, ainda que a civilização do Renascimento não tenha mais de quatrocentos anos, seus pontos de vista e instituições já estão eclipsadas pela metade por aqueles de sua sucessora ainda inominada.

Por outro lado, acontece freqüentemente que a história não percebe o nascimento de uma nova cultura e pode unir duas ou mesmo três gerações de culturas, sucedendo-se uma após outra sob o mesmo nome. Assim, a Civilização Cristã Primitiva, a Cristã Monástica e a Civilização Cristã Medieval são geralmente consideradas uma só, embora tenham distintamente três momentos de nascimento, três carreiras distintas e três mortes. Nesse sentido, uma cultura pode parecer muito maior do que realmente é.

Quando uma cultura provém de outra, parece novamente seguir a analogia da geração de crianças humanas e emergir no terceiro ou quarto século da cultura progenitora. Habitualmente, esta última já alcançou um nível muito elevado e o fundador da nova é como se fosse seu produto mais alto combinando em si mesmo todas as suas realizações e compreensões. Gautama Buda, fundador da primeira civilização budista, por exemplo, era um aristocrata Sakya que reuniu em si o mais alto grau possível de tudo o que a herança e educação de seu próprio tempo podia oferecer, o mesmo aplicando-se a São Bento66 que nos parece ser o fundador da cultura monástica cristã do século VI d.C.

Com freqüência, a união de elementos procedentes de duas culturas distintas e geograficamente separadas é claramente delineada na paternidade de uma terceira. Assim, a cultura cristã medieval, ainda que nascida no século XI do corpo da cultura monástica que a precedeu, mostra sinais de ter sido engendrada pelo novo conhecimento e influência da brilhante cultura muçulmana que floresceu na Espanha e no Oriente Médio. Mas o desenvolvimento completo dessa idéia deve esperar exemplos detalhados que serão fornecidos no capítulo seguinte.

Enquanto isso, podemos dizer que a concepção de uma cultura, como a concepção de qualquer outra criatura viva, requer que dois fatores se encontrem em condições e tempo adequados. Primeiro deve haver solo fértil e virgem, no qual nenhuma civilização prévia haja crescido ou no qual tais civilizações já tenham morrido, deixando-o outra vez desocupado. Exceto em circunstâncias muito raras, uma nova cultura não pode crescer no lugar de uma já existente. Ao mesmo tempo, esse solo deve mostrar sinais de vida nova. Ele deve ter um calor natural e vigor próprio que fará germinar o que quer que seja plantado nele. Deve ser rico, saudável e fértil

Tudo isso se refere ao fator passivo e feminino na concepção de uma cultura, ao solo no qual será plantada. E, se olharmos o mundo de meados do século XX, veremos – à parte aquelas áreas que são obviamente a cena de uma cultura em declínio, quando não em sua agonia de morte – certos solos que parecem satisfazer essas condições. Um país como o México, no qual as ossadas das antigas civilizações Asteca e Maia foram há muito apagadas e no qual a pseudo-cultura emprestada da Espanha colonial já morreu e onde, todavia, uma nova e tremenda vitalidade começa a despertar, parece certamente maduro para ser fecundado.

O que não podemos calcular ou prever, no entanto, é o elemento ativo nesse advento de uma cultura, o germe masculino. Como dissemos, ele pode vir apenas de um nível muito elevado de escola esotérica e na pessoa de um homem real e extraordinário – um fundador de espírito consciente.

Não podemos simular tal fecundação. Podemos apenas esperar e vigiar, assegurados pela história de que em algum lugar e de alguma forma o nascimento de uma nova cultura já deve estar sendo preparado.


II A Alma de uma Civilização: Os Quatro Caminhos


Consideramos como a essência do homem toda a corrente de seu sangue, desde a concepção até a morte, e todas as influências que ela contém, e sua alma como a soma de todas as energias que tendem à consciência nele, o total de todos aqueles momentos nos quais ele estava realmente consciente de sua própria existência e de sua relação com o universo à sua volta.

Mas o que é a essência de uma civilização? Numa forma poética ou artística, não é difícil reconhecer que cada cultura tem sua própria natureza característica, sua própria ‘essência’. Essa essência expressa-se por meio de sua arte, literatura, música, hábitos, costumes, interesses, ideais, debilidades, modas, vestuário, posturas, gestos, extravagâncias, etc.; todas devendo ser ‘vistas juntas’ para poder captar um vislumbre da essência que está por trás, assim como todos os atributos correspondentes de um homem individual devem ser ‘vistos juntos’ como um indício para sua essência individual.

Em figuras como Tio Sam, John Bull, La Belle France e ainda em símbolos paradoxos, como o leão e o unicórnio ou a águia e a serpente, os homens tentaram expressar a essência vagamente sentida de seus países. Mais sutil e ilusória ainda será a essência da grande cultura que está por trás de todos eles.

Essa essência é bastante difícil de ser definida de forma exata. Mas indícios muito interessantes dela são fornecidos pelos monumentos característicos de uma civilização, suas instituições características e seu modo característico de transmitir suas idéias. Os monumentos característicos da civilização romana, por exemplo, são seus grandes trabalhos públicos, suas vias, aquedutos e anfiteatros; sua instituição característica é seu código de leis e seu sistema de administração; seu método característico de transmissão de idéias é por ordem pública, leis e literatura. Na civilização cristã medieval, o monumento característico é a catedral, a instituição característica é a organização eclesiástica e a transmissão de idéias feita pela arquitetura, escultura e ritual. A Cultura do Renascimento é caracterizada pela universidade como monumento, pelo humanismo como instituição e por livros e pinturas naturalistas como meio de transmissão de idéias. Todas essas são expressões de essências bastante diferentes e definidas.

Algumas vezes, também, um relâmpago da compreensão dessa idéia ocorre-nos quando percebemos curiosas similaridades de essência em civilizações amplamente separadas por tempo e espaço. Há uma semelhança surpreendente no ‘sabor’ dos tempos, por exemplo, entre a cultura dos Partos dos primeiros séculos de nossa era e a dos primórdios da era feudal na Europa Ocidental – ambas civilizações de cavalaria, nobreza e cortes que habitavam em tendas, de pessoas de violenta emotividade, num dado momento apaixonadamente devotadas à batalha e noutro à jardinagem. Ou ainda entre o Império Romano do século II e o Império Britânico do século XIX.

A mesma essência expressa-se em literatura característica. Pensemos na essência da cultura que há por trás de Beowulf ou a Canção de Rolando, por exemplo, em contraste àquela por trás de Shakespeare por um lado e da Guerra e Paz de Tolstoy por outro. Todas essas obras são duradouras, pertencem à humanidade. Ao mesmo tempo, são expressões perfeitas da essência de uma civilização em particular num determinado período.

Ainda assim, não devemos nos dispersar pela diferença que surge da idade de uma cultura, pois sua essência é o que a conecta com suas idades, o que permanece constante ao longo de toda sua existência. Nesse sentido, a idéia diretriz do misticismo e da Igreja, ainda que tivesse tomado formas diferentes e servido a diferentes propósitos, permaneceu constante durante a Civilização Cristã Medieval, assim como aquela do conhecimento e educação permaneceu durante todo o Renascimento. A essência é o que é permanente ou inato na natureza de uma cultura. Nessa essência e cultura de sua raça, cada homem participa diretamente. É verdade que sua memória consciente do passado está limitada pela geração de seus avós, de quem, quando criança, ouviu relatos do mundo de cinqüenta anos atrás e dentro de cujo tempo ele pôde vivida e pessoalmente entrar. Mas, além de seus avós, um homem tem oito bisavôs, dezesseis tataravôs e assim por diante. Vinte gerações ou sete séculos atrás – supondo que não haja miscigenação –, esse mesmo homem é descendente de um milhão de indivíduos de sua própria raça. Um inglês nascido em 1950 pode descender de talvez um quarto da população da Inglaterra dos dias de Chaucer. Assim, ele é herdeiro da essência da Inglaterra de Chaucer de uma forma muito real e, se ele for um homem de observação e sensibilidade, pode verificar que existem nele – como atas antigas – traços de diferentes aspectos de sua raça e cultura que poderão assombrá-lo tanto como homem moderno quanto como indivíduo.

Isso explica porque os homens sentem lealdade muito mais profunda pelo passado remoto de seu país que por seu passado mais recente. Quanto mais antigo e legendário esse passado, maior o poder de atração que ele exerce. Quanto mais um homem olhe para o passado de sua raça, mais completamente descenderá dela e mais completamente ela encontrar-se-á representada nele. Em seu próprio sangue estará refletido, ainda que levemente, todo o sangue dos primeiros fundadores de seu país.

Essa idéia foi corrompida em nossa época por mentalidades pervertidas e converteu-se em uso criminoso, assim como tantas outras idéias. Isso não afeta sua verdade. Não podem haver, portanto, implicações de superioridade ou discriminação aqui. Todos os homens descendem de um número igual de ancestrais, todos igualmente ricos – aqueles de raças misturadas não menos e talvez ainda mais que aqueles de uma só, embora os primeiros possam na verdade herdar conflitos internos que os últimos não sintam. Assim, podemos estender nossa analogia do homem indivíduo para a cultura e dizer que sua essência é a totalidade do sangue daquela cultura e podemos acrescentar que cada homem contém literalmente em si mesmo toda a essência dos primeiros dias de sua cultura.

O que é então sua alma? Se a essência é difícil de definir, isso é dez vezes mais. Mas, de alguma forma, a alma de uma civilização será a totalidade das almas de seus filhos, a soma de todos aqueles que, durante sua existência, alcançaram consciência. Ela será toda a consciência humana alcançada dentro daquela cultura. Seus traços podem aparecer-nos talvez naquelas altas escrituras que descrevem o modelo do universo e o modo de torná-lo consciente. Isso pode revelar almas diferentes – como o Novo Testamento é diferente do Alcorão e ambos dos Vedas. Mas, no fundo, a alma de uma civilização não pode ser feita de nenhum outro material que não seja as almas dos homens e daquilo com o que as almas dos homens se conectem.

Essa alma de uma civilização alimenta-se de três maneiras: aqueles três caminhos tradicionais pelos quais os homens podem tornar-se conscientes e desenvolver almas individuais próprias. Esses ‘caminhos’ e escolas de regeneração que existem para administrá-los e ensinar seus métodos na Terra dependem da idéia de desenvolver consciência primeiramente numa função particular. Ao tornar-se plenamente consciente numa função, um homem encontra seu caminho para a consciência de todo seu ser. Ao transformar a natureza dessa função, transforma todo seu ser. Ao adquirir um instrumento para controlar uma função, ele adquire uma alma.

O primeiro caminho para a consciência é por meio das funções instintiva e motora; o segundo caminho é por meio da função emocional; o terceiro é por meio da função intelectual.

O primeiro caminho é algo semelhante ao que no Ocidente é conhecido como ascetismo. Ainda que ele contenha muito mais do que essa palavra possa significar, usamo-la por falta de uma mais adequada. Esse é o caminho do alcance de consciência pelo domínio das funções físicas, pela superação da dor. É o caminho da transmutação da dor em vontade. No Oriente, inclui muitas práticas de faquir e, em sua forma mais completa, é conhecida como hatha yoga. Mas, enquanto que os passivos orientais podem seguir esse caminho sustentando seus braços acima da cabeça ou sentando-se no topo de uma coluna por sete anos como São Simeão, o Estilita, no ativo Ocidente o domínio do corpo geralmente toma uma forma muito diferente.

Na vida moderna, os melhores exemplos de homens que seguem o caminho ascético são certos exploradores ou alpinistas, homens que, ao tentarem alcançar os pólos ou escalar os picos do Himalaia, suportam tremendas dificuldades, forçando seus corpos além dos limites da resistência, movidos por uma compulsão que nunca podem explicar completamente. Scott e seus companheiros congelando-se paulatinamente até a morte no Pólo Sul, Irving e Mallory escalando sozinhos até o topo do Monte Everest, o qual nunca puderam alcançar e do qual nunca retornariam, foram, de fato, faquires ocidentais empenhados em criar por si mesmos almas pelo primeiro caminho, ou caminho ascético.

Nesse caminho, nem a questão do motivo ou a compreensão entram. O faquir pode estar ganhando a vida da única forma disponível para ele. O autopenitente anacoreta pode estar tentando esquecer uma mulher. O atleta insuperável ou acrobata pode estar faminto por publicidade. Não importa. Conduzir o corpo consistentemente à superação da dor e do medo da morte é um fato independente de motivos. Aquele que o faz pode criar uma alma. Sua alma é feita de bravura.

O segundo caminho depende de uma união do que no Ocidente é conhecido como misticismo e caridade, embora ambas as palavras sejam insatisfatórias. É o caminho do alcance de consciência pelo domínio da função emocional, pela superação do medo. É o caminho da transmutação do medo em amor. Por esse caminho, um homem recebe com regozijo todas as situações que comumente dão origem ao medo ou desgosto precisamente para mostrar que essas emoções podem ser transformadas em algo muito diferente, ou seja, na sensação inteiramente nova do êxtase. Ele saúda a pobreza, o celibato, a doença, a obediência absoluta à vontade de um superior religioso e muitas outras limitações de prazer comum. Sacrifica todas as emoções menores e triviais no sentido de adquirir uma emoção maior e transcendental.

São Francisco de Assis é talvez o melhor exemplo ocidental de um homem trilhando esse caminho e seu abraço no leproso é uma demonstração clássica do método de adquirir amor superando o medo. Outros que – como Florence Nightingale – vencem deliberadamente sua repugnância natural com o objetivo de servir o enfermo, o pobre, o idoso ou o oprimido podem talvez ser candidatos involuntários para esse segundo caminho, ou caminho emocional para a consciência.

Aqui fica claro que o motivo é de importância prioritária, embora a compreensão não o seja. Um homem que é caridoso no sentido de ser bem quisto não adquirirá nada, embora sua inclinação natural seja sacrificada no processo. Nesse caminho, é a emoção, e não o fato, o que se torna a chave. Sem emoção positiva, cada esforço visível não será senão pretensão, mais impedindo que contribuindo no crescimento interno. Com amor, o resultado pode ser obtido sem que um homem sequer perceba a dificuldade do que ele faz. Sua alma é feita de bondade.

O terceiro caminho é o que se costuma compreender por filosofia. É o caminho do alcance de consciência pelo domínio da função intelectual, pela superação do pensamento. É o caminho da transmutação do pensamento em compreensão. Por esse caminho, um homem procura submeter o divagar sem sentido da mente ao esquema das leis cósmicas. Esforça-se por pensar em tudo o que lhe acontece, sobre todos os que encontra, não em relação com o que lhe agrada ou desagrada, mas em relação aos grandes princípios. Dessa forma, gradualmente se torna livre de um ponto de vista subjetivo e adquire compreensão objetiva. Não era apenas o caminho de grandes pensadores do clero e escolas filosóficas do passado – São Tomás de Aquino e Isaac Newton, por exemplo – como também em nossos dias está particularmente aberta àqueles de mente científica, dado que eles realmente se esforçam por viver todos os ângulos de suas vidas de acordo com as grandes leis que estudam ou descobrem.

Para ter sucesso nesse caminho, um homem deve compreender o que faz e por que o faz. Deve sacrificar a autodecepção, preconceito e inconsistência. Sua alma deve ser feita de sabedoria.

Vemos assim que os três diferentes caminhos – ascetismo, caridade e filosofia – não somente produzem escolas independentemente próprias, mas podem ser seguidas também por indivíduos independentes, não tendo conexão externa com qualquer escola. E novamente eles podem ser incluídos como ‘ordens’ separadas em alguma grande escola histórica, como a Igreja Católica Romana. Nesse caso, todavia, geralmente encontramos os caminhos numa ou noutra combinação. Talvez possamos dizer que a ordem fundada por São Francisco tentou combinar ascetismo com caridade, aquela fundada por Santo Inácio de Loyola combinava ascetismo e filosofia e aquela fundada por São Vicente de Paula, filosofia e caridade. E talvez possamos também acrescentar que o mais alto ponto alcançado por tais ordens foi quando, sabendo ou não, elas tentaram combinar os três caminhos num só.

Ao capacitar os homens a criar suas próprias almas por meio de um trabalho consciente nas diferentes funções, capacitá-los a criar três diferentes classes de alma por assim dizer, esses caminhos alimentam literalmente a grande alma de sua cultura. Na verdade, fornecem as três espécies de nutrição que essa grande alma requer, exatamente como comida, ar e percepções, digeridos por diferentes funções, fornecem os três tipos de nutrição requeridos pelo corpo.

Há, contudo, um quarto caminho sobre o qual muito pouco é comumente conhecido. Esse caminho consiste no domínio das funções instintivas, emocionais e intelectuais ao mesmo tempo; em transmutar dor, temor e pensamento em suas contrapartes mais elevadas de vontade, amor e compreensão simultaneamente. Nesse caminho, um homem esforça-se por ser consciente em pelo menos três funções de uma só vez. E ele tenta harmonizar o trabalho dessas funções, fazer com que uma ajude a outra a servir à mesma meta. Assim, se força seu corpo a realizar alguma tarefa física muito difícil, também trabalhará deliberadamente para transformar pequenos temores e ressentimentos que surgem dela e tentará, além do mais, compreender o que está fazendo e por que o faz, tentando relacionar tudo o que estiver conectado com sua conduta às grandes leis naturais com as quais já está familiarizado. Nesse caminho, ele tem três campos separados de estudo, cada um dos quais explica e reforça os outros.

Desse modo, a consciência que é desenvolvida pelo quarto caminho é mais geral. Abarca todos os lados do homem e é menos provável que deixe alguma debilidade fundamental ou deficiência perigosa por ser vista. Por essa razão, o quarto caminho é seguido nas condições da vida comum, diferente dos caminhos ascéticos e místicos que geralmente requerem o sacrifício imediato de tudo o que é familiar e a mudança para condições totalmente novas, como aquelas de um deserto ou de um mosteiro. O homem que empreende esse caminho tem que levar adiante todos os seus experimentos e esforços em seu ambiente usual, e todos esses experimentos – à parte os resultados internos pelos quais trabalha – devem produzir também resultados externos que sejam razoáveis e benéficos de um ponto de vista comum.

O quarto caminho para a consciência é algumas vezes mais rápido e algumas outras mais lento que os outros caminhos. Mas sua característica principal é que ele é mais harmonioso e por isso mais seguro. O homem que aprendeu a transformar suas emoções apenas na atmosfera especial de um mosteiro, se for repentinamente requisitado pelo destino a lutar por sua sobrevivência no mundo dos negócios, pode achar seus métodos inúteis e pensar que todo seu trabalho foi tempo perdido. O asceta que adquiriu vontade vivendo numa caverna e jejuando, se for subitamente colocado em condições em que todos os tipos de prazeres físicos estejam livremente acessíveis, pode encontrar-se assolado por apetites cuja existência ele nem mesmo suspeitava. Por outro lado, o homem que trabalhou no quarto caminho e que procurou tornar-se consciente em todas as suas funções e em todas as situações não poderá cair tão facilmente. Para ele, consciência não será dependente de associações especiais, mas aquela que o acompanhará sempre, seja jejuando ou bebendo vinho, só ou na multidão, trabalhando ou meditando. Será aquela que ilumina tudo quanto acontece.

Existem muitas coisas estranhas a respeito do quarto caminho. Se o asceta deve ser bravo, o místico bom e o filósofo sábio, aquele que tenta seguir o quarto caminho deve aprender a ser bravo, bom e sábio ao mesmo tempo. Se ele deixa de aspirar a qualquer uma dessas qualidades, seu trabalho e desenvolvimento fica detido precisamente nesse ponto. Assim, as escolas do quarto caminho estão sempre trabalhando como que sobre o fio de uma faca e suas tendências – de onde quer que sua influência imediata de níveis superiores seja retirada –, serão sempre reportadas a um dos outros caminhos, os quais satisfazem-se seja com austeridade, caridade ou filosofia.

Por isso, pode parecer muito mais difícil trabalhar no quarto caminho que em qualquer dos outros três. Num sentido é assim. Aquele que tenta seguir por ele encontra-se constantemente perdendo o fio condutor, o qual nenhum dogma, método ou crença assegura. Por outro lado, para muitas pessoas, o quarto caminho representa o único caminho aberto para elas, pois nenhum outro as aceitará como são ou lhes mostrará como passar e transmutar por interesses, amores, anseios, fraquezas e hábitos, os quais são incapazes de abandonar de um só golpe.

Escolas do quarto caminho existiram e existem, assim como as escolas dos três caminhos tradicionais existiram e existem. Mas são muito mais difíceis de detectar, porque – à diferença das outras – não podem ser reconhecidas por qualquer prática, método, tarefas ou nomes. Estão sempre inventando novos métodos, novas práticas, adaptáveis ao tempo e condições nos quais existem e, desde que alcancem uma tarefa que fixaram, passam para outra, mudando freqüentemente seu nome e toda a aparência no processo.

Assim, indubitavelmente, as escolas do quarto caminho estavam por trás do projeto e construção das grandes catedrais góticas, ainda que não tivessem um nome especial, e adaptaram-se à organização religiosa da época. Por um período os clunienses, abrigaram-nas; em outro, os franco-maçons. No século XVII, escolas do quarto caminho tomaram emprestado muitas das descobertas da arqueologia grega e egípcia para revestir suas idéias e sua organização, enquanto alguns de seus líderes – no sentido de penetrar nos círculos amantes do luxo e da sofisticação onde tinham que realizar seu trabalho – podiam aparecer à guisa de magos ou mesmeristas da moda.

O quarto caminho procura introduzir consciência em todos os lados da vida e sua forma sempre está conectada com aquilo que é mais novo, com o que prepara o futuro.

Ao mesmo tempo, por definição, o quarto caminho – como os outros três caminhos – preocupa-se primordialmente com o desenvolvimento das almas humanas. E seu verdadeiro trabalho, como o dos outros, é alimentar a alma da cultura com a qual ela trabalha. Assim, pode ser dito que o estágio de desenvolvimento da alma de uma dada cultura será resultado direto desses quatro caminhos e do trabalho das escolas que os estudam.


III O Absoluto Descendente ou Religião Comparativa


Há na realidade uma forma na qual podemos comparar as almas das civilizações e as diferentes fases de uma civilização. Isso está de acordo com sua visão do universo.

Na primeira parte deste livro, tentamos estabelecer a estrutura geral do universo. Tivemos que imaginar um Absoluto filosófico no qual nadavam, por assim dizer, números infinitos de galáxias. Similarmente, dentro de nossa própria galáxia ou Via Láctea, nadam inumeráveis sóis. Dentro do nosso sistema solar, nadam planetas. Sobre a superfície de nosso planeta, a Terra, nada o mundo da vida orgânica. Dentro desse mundo da vida orgânica, nadam homens individuais; dentro do homem, células; dentro das células, moléculas; dentro das moléculas, elétrons.

Cada mundo ou cosmos é incomensurável para aquele que o contém. Desaparece no maior, torna-se invisível em relação a ele. O cosmos superior contém possibilidades infinitas para o inferior, é deus para o inferior. Nesse sentido, cada mundo pode ser considerado como absoluto ou como deus para a escala de entidade menor. Ainda assim, o homem, por sua natureza extraordinariamente complexa, está aparentemente dotado com o poder de apreender não apenas o mundo imediatamente acima dele – ou seja, o mundo da vida orgânica do qual ele faz parte – mas muitos mundos superiores: a Terra, o Sol, a Via Láctea e ele pode mesmo supor filosoficamente um Absoluto dos absolutos. Assim, o homem tem muitos absolutos ou deuses dentre os quais pode escolher.

Se considerarmos diferentes civilizações e mesmo diferentes povos dentro da mesma civilização, vemos que, de maneira geral, o homem situou seu absoluto, ou seja, sua concepção de deus ora maior ora menor, no universo.

Em várias épocas, freqüentemente no começo das civilizações, foram feitas tentativas de difundir a idéia de um Absoluto dos absolutos, de um Uno abstrato e sem forma. Mas essa idéia é evidentemente impossível para uso comum, pois imediatamente qualquer nome ou atributos conferidos a ele, ou associá-lo com um céu particular ou corpo celestial faz com que ele descenda para outro nível. E, desde que nenhuma veneração geral ou estudo possa ser realizado sem nomes ou imagens, esse nível de ‘deus’ está completamente fora do alcance do homem.

Ocasionalmente, encontramos um absoluto galáctico, como Khepera no Egito, criador dos próprios deuses, ou como Shiva, que num piscar de olhos contém a vida toda do Sistema Solar. Mas tal concepção ainda é muito difícil para homens comuns e nunca vai além do clero ou da casta brâmane.

Geralmente, no próprio despertar de cada civilização, junto com essas idéias abstratas, um absoluto mais possível situa-se no nível do Sol. Os homens podem sentir o calor e a luz do Sol, compreender sua completa dependência dele, estudar intelectualmente sua natureza e regozijar-se emocionalmente nele como fonte de vida, nas estações, na beleza da cor e assim por diante. De acordo com nosso estudo, podem mesmo alcançar sua natureza. Assim, freqüentemente uma deificação do Sol deu aos homens um absoluto vivo e real que poderia dirigir sua adoração de uma forma bastante imediata. Ra no Egito, Apolo na Grécia, Baal na Síria, Tonatiuh no México e Indra na Índia foram deuses colocados nesse nível.

Em outras épocas, freqüentemente numa etapa posterior e mais degenerada de uma civilização, a veneração geral começou a mover-se para o nível dos planetas ou para a própria Terra. Nas últimas fases dos mundos grego e romano, no final da Idade Média e particularmente em muitas seitas do século XVII, os seres planetários tornaram-se o mais alto conceito ou absoluto. E da idéia da interação de suas influências, do uso ou trabalho com essas influências, de alguma forma surgiu a pseudo-ciência da magia. O prevalecimento de idéias de magia está quase sempre conectado com o politeísmo inerente do tomar os planetas como deus ou absoluto.

Numa etapa ainda mais avançada de degeneração, vista geralmente nos descendentes distantes das antigas civilizações que vivem como selvagens, os poderes mais elevados estão associados com manifestações da natureza – relâmpago, chuva, florestas, montanhas etc. – ou seja, com o mundo da vida orgânica, o imediatamente superior ao homem. Isso é colocar o absoluto num nível ainda mais baixo.

Desse modo, temos um esquema para o estudo de religião comparativa e vemos também que o desenvolvimento de cada civilização é geralmente acompanhado por uma degeneração da idéia de absoluto a níveis cada vez mais baixos. Em vista disso, parece absurdo, já que mais tarde os homens presumivelmente olhariam para trás vendo concepções superiores reveladas na história que têm atrás de si. Mas uma curiosa trapaça da psicologia humana fez com que essa transição descendente pareça muito simples. Essas concepções superiores, vistas através das lentes distorcidas do tempo, parecem ao ser humano, mais degenerado ainda, uma superstição. E, atribuindo esse nome a elas, ele permanece inteiramente satisfeito com seu próprio nível de compreensão.

Falamos de selvagens que tomavam o mundo da natureza por absoluto ou deus. Há, contudo, outra etapa ainda de degeneração particularmente prevalecente em nossa época. Ela é expressa pela aceitação de um homem como absoluto ou deus. Isto é, ao considerar um homem comum não-desenvolvido como o mais alto ser ou maior poder do universo. Isso é bastante distinto da idéia dos santos, pois estes pressupõem imediatamente um deus ou um poder muito maior de quem os santos atuam como intermediários. A deificação de um imperador romano, a adoração a um Hitler, a obediência absoluta a algum partido do governo ou, por outro lado, a idealização de uma figura imaginária, como o Homem Comum, quando nenhum poder superior é reconhecido, são exemplos do considerar o homem como deus ou absoluto.

Abaixo disso, reside apenas o pesadelo da superstição – de nenhuma forma desconhecida nos dias de hoje –, quando o homem acredita que micróbios, bactérias e outros organismos subumanos sejam mais fortes que o homem ou deus, ou seja, o poder final do universo.

Tudo isso geralmente é indicativo da ação do processo patológico ou criminoso no corpo de uma civilização, pois a característica desse processo, como vimos anteriormente quando o consideramos no Sistema Solar e no homem, é a relação equivocada entre a parte e o todo. Uma crença geral no homem ou no micróbio como o mais alto poder no universo significa que, nesse período, o ser da humanidade perdeu completamente sua relação com todo o corpo cósmico. De tal estado patológico, raramente as civilizações se recuperam. É tempo então de reconstruir tudo do começo para uma geração totalmente nova que está por nascer.


62. F. Sherwood Taylor, ‘The World of Science’ pág. 819.

63. ‘As Leis de Manu’, um antigo código indiano de idéias e ideais conectados com as castas são apresentadas por P. D. Ouspensky em ‘Um Novo Modelo do Universo’, Capítulo XI, Editora Pensamento.

64. Arnold J. Toynbee: ‘A Study of History’, em várias passagens.

65. Sir. Napier Shaw, ‘Manual of Meteorology’, vol. II, pág. 318-319. Sir. Napier continua: “O ciclo lunar solar de 744 anos foi evocado pelo Abade Gabriel. Combina 9202 revoluções sinódicas, 9946 tropicais, 9986 diaconáticas, 9862 anômalas, 40 revoluções de nodo ascendente da órbita lunar e 67 períodos de manchas solares”. É digno de nota que uma tentativa de estabelecer um padrão de tempo para o surgimento e queda das civilizações sobre uma base de um ‘grande ano’ de 360 anos e seu duplo período de 720 anos foi feito por John Napier, o inventor dos logaritmos, à guisa de uma interpretação do Apocalipse. (‘A Plaine Discovery of the Whole Revelation of St. John’, Londres, 1611).

  1. 480-543 d.C.